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A Recuperação Judicial de Associações Sem Fins Lucrativos: Uma Análise da Decisão do Jockey Club de São Paulo e o Posicionamento do STJ

Informe Reestruturação Corporativa

Prezados clientes e colaboradores,

A recente decisão da Justiça de São Paulo que deferiu o pedido de recuperação judicial do Jockey Club de São Paulo, uma associação civil sem fins lucrativos, reacende o debate sobre a aplicabilidade da Lei nº 11.101/2005 (Lei de Recuperação Judicial e Falências – LREF) a entidades que, embora não visem o lucro, desempenham atividades econômicas relevantes.

Isso porque é expressivo o número de associações sem fins lucrativos que enfrentam dificuldades financeiras no Brasil nas mais distintas atividades e ramos de atuação.

Em 26 de setembro de 2025, o juiz Jomar Juarez Amorim, da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, aceitou o pedido de recuperação judicial do Jockey Club de São Paulo que declarou uma dívida estimada em R$ 19,1 milhões, sem incluir um passivo tributário significativo, que a Prefeitura de São Paulo alega ultrapassar R$ 800 milhões em IPTU não pago.

O ponto central da decisão judicial reside no reconhecimento de que, apesar de ser uma associação sem fins lucrativos, o Jockey Club realiza atividades econômicas empresariais, como a locação de espaços para restaurantes e eventos, além da prestação de serviços médico-veterinários. O juiz do caso entendeu que não seria razoável excluir a entidade do regime recuperatório, uma vez que ela atua como um agente econômico gerador de riqueza.

O entendimento da Justiça paulista no caso do Jockey Club contrasta com a jurisprudência que vinha sendo consolidada no Superior Tribunal de Justiça (STJ). A Corte Superior tem se posicionado majoritariamente no sentido de que associações e fundações civis sem fins lucrativos não possuem legitimidade ativa para pleitear recuperação judicial.

Em outubro de 2024, a 3ª Turma do STJ decidiu que não cabe recuperação judicial para associações e fundações civis sem fins lucrativos. Mais recentemente, em junho de 2025, a 4ª Turma do STJ iniciou o julgamento de um caso envolvendo a Associação Pró-Saúde, uma entidade sem fins lucrativos com dívidas de R$ 700 milhões. No caso o ministro relator, João Otávio de Noronha, votou por negar o provimento ao recurso, argumentando que a Lei 11.101/2005 é destinada a sociedades empresárias, e a teoria da empresa adotada no ordenamento jurídico brasileiro não abrange associações civis sem fins lucrativos, mesmo que exerçam atividades econômicas, pois não visam o lucro e não o distribuem entre seus associados.

Os argumentos do ministro Noronha incluem a preocupação com a insegurança jurídica que a extensão da recuperação judicial a essas entidades poderia gerar, além do potencial prejuízo aos associados em caso de conversão do procedimento em falência. Ele sugeriu que o procedimento de insolvência civil seria mais adequado para associações em crise, em vez do regime falimentar.

É importante notar que o STJ fez uma exceção para cooperativas médicas, admitindo a recuperação judicial para essas entidades com base em uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que declarou a constitucionalidade de um parágrafo da Lei de Falências que permite a RJ para sociedades operadoras de planos de assistência à saúde que sejam cooperativas médicas. No entanto, essa exceção não se estende a outras associações civis.

A decisão da Justiça de São Paulo, ao permitir a recuperação judicial do Jockey Club, abre uma importante discussão sobre a função social e a relevância econômica de associações que, embora formalmente sem fins lucrativos, geram empregos, movimentam a economia e prestam serviços à comunidade.

O artigo 47 da LREF estabelece que a recuperação judicial visa viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

Muitos argumentam que esses objetivos são perfeitamente aplicáveis a associações que, como o Jockey Club, possuem grande impacto social e econômico, mesmo sem a finalidade de distribuir lucros.

A divergência entre a decisão de primeira instância e o posicionamento do STJ evidencia uma lacuna legislativa e a necessidade de uma interpretação mais flexível da LREF. A rigidez na aplicação da teoria da empresa pelo STJ pode levar à inviabilidade de recuperação de inúmeras entidades que, embora não sejam sociedades empresárias, geram valor para a sociedade e empregam milhares de pessoas.

O regime da insolvência civil, apontado como alternativa pelo STJ, é considerado obsoleto e inadequado para a reestruturação de atividades complexas, sendo um processo liquidatário que não visa a manutenção da fonte produtora.

O cenário de dificuldades financeiras enfrentado por associações sem fins lucrativos no Brasil é alarmante e reforça a importância de mecanismos de reestruturação de dívidas. Estatísticas recentes revelam a fragilidade desse setor:

• Fechamento de OSCs: Pelo menos um terço de todas as Organizações da Sociedade Civil (OSCs) criadas no Brasil nos últimos 120 anos já encerraram suas atividades, com essa tendência de fechamento continuando desde os anos 2000.

• A crise econômica contribuiu para o fechamento de 38,7 mil unidades locais de organizações do terceiro setor no país.

• Prevalência de Associações: Das 815 mil organizações do terceiro setor, 660 mil (80,9%) são juridicamente associações sem fins lucrativos.

• Relação com Bancos: 42% das organizações avaliaram a relação com os bancos como abaixo do razoável, indicando um descompasso e barreiras operacionais e administrativas no acesso ao sistema financeiro.

Esses dados sublinham a necessidade de um arcabouço legal que permita a essas entidades, muitas vezes responsáveis por serviços essenciais e geração de empregos, reestruturar suas dívidas e continuar suas atividades, evitando o colapso e seus impactos sociais e econômicos.

A decisão da Justiça de São Paulo no caso do Jockey Club representa um marco importante na interpretação da Lei de Recuperação Judicial, ao reconhecer a natureza econômica de associações sem fins lucrativos e a necessidade de lhes estender os benefícios da recuperação.

Embora o STJ tenha adotado um posicionamento mais restritivo, a relevância social e econômica dessas entidades, aliada à inadequação do regime de insolvência civil, sugere que a jurisprudência pode evoluir para uma abordagem mais pragmática e alinhada com os princípios da LREF.

A discussão em torno da recuperação judicial de associações é crucial para a sustentabilidade do terceiro setor no Brasil.

A capacidade de reestruturar dívidas pode ser a diferença entre a continuidade de serviços essenciais e o fechamento de organizações que desempenham um papel vital na sociedade como saúde e educação.

A decisão do Jockey Club, portanto, não é apenas um caso isolado, mas um indicativo de uma possível mudança de paradigma que pode beneficiar inúmeras associações em dificuldades, garantindo a preservação de suas atividades e a manutenção de sua função social.

 

Nossa equipe, como sempre, está à disposição para auxiliar nas repercussões deste tema.

 

Filipe Souza 

Guilherme Padilla